Resumo: O presente artigo visa estudar o princípio da vedação ao retrocesso, sua relação com o efeito backlash da jurisdição constitucional, com fundamento na edição da Medida Provisória 870/2019, que transferiu a competência para demarcação de terras indígenas para o Ministério da Agricultura e Abastecimento, e a decisão do Supremo Tribunal Federal sobre a inconstitucionalidade da MP 870/19. Com fundamento nos direitos fundamentais e nos direitos humanos positivados em Tratados e Convenções Internacionais relacionados às comunidades indígenas, pretende-se refletir sobre a possibilidade de retrocesso no que tange ao reconhecimento de futuras terras indígenas. Tendo em vista a relevância do tema, especialmente para a região Amazônica, uma vez que os direitos indígenas relacionados à terra têm sido cada vez mais discutidos e alvo de críticas, a análise do assunto convida a uma reflexão sobre possíveis retrocessos em direitos indígenas consagrados. Para desenvolver o presente trabalho utiliza-se a metodologia teórico-jurídica associada com a técnica de pesquisa de fontes bibliográficas do direito em geral. Para tanto, estuda-se a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, o texto constitucional, atos legislativos e atos administrativos e, finalmente, a doutrina em suas variadas vertentes passando pelo direito indígena e constitucional. A pesquisa indicou que as alterações na competência para reconhecimento e demarcação de terras indígenas violou diversos dispositivos do ordenamento jurídico brasileiro, bem como da órbita internacional.
Palavras-Chave: princípio da vedação ao retrocesso; efeito backlash; direitos indígenas fundamentais; demarcação de território indígena; Medida provisória 870/2019.
Abstract: This article aims to study the principle of the prohibition of retrogression, its relationship with the backlash effect of constitutional jurisdiction based on the edition of “Medida Provisória” 870/2019, which shifted the assignment for demarcation of natives lands to the Ministry of Agriculture and Supply, and the decision of the Federal Supreme Court on the unconstitutionality of MP 870/19. Based on the fundamental and human rights established in International Treaties and Conventions related to natives communities, it is intended to reflect on the possibility of retrogression regarding the recognition of future indigenous lands. Considering the relevance of the theme, especially for the Amazon region, since indigenous rights related to land have been increasingly discussed and criticized, the analysis of the subject invites a reflection on possible setbacks in established indigenous rights. In order to develop the present work was use the theoretical-legal methodology associated with the research technique of bibliographic sources of law in general. For this purpose, we study the jurisprudence of the Brazilian Supreme Court, the constitutional text, legislative acts and administrative acts, and finally, the doctrine in its various strands passing through indigenous and constitutional law. The research indicated that the changes in the competence for recognition and demarcation of indigenous lands violated several provisions of the Brazilian legal system, as well as the international orbit.
Keywords: principle of the prohibition of retrogression; backlash effect; fundamental indigenous rights; demarcation of indigenous territory; Provisional Measure 870/2019.
SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO. 2. A MEDIDA PROVISÓRIA 870/2019 E A COMPETÊNCIA PARA DEMARCAÇÃO DE TERRAS INDÍGENAS. 3. O PRINCÍPIO DA VEDAÇÃO AO RETROCESSO SOCIAL E EFEITO BACKLASH. 4. O RETROCESSO AOS DIREITOS FUNDAMENTAIS INDÍGENAS. 5. A DECISÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NAS ADI’S 6062, 6172, 6173 e 6174 em relação à Medida Provisória 886/2019. 6. CONCLUSÃO. 7.REFERÊNCIAS.
1.Introdução
Nos últimos anos, o Poder Judiciário tem desempenhado um papel cada vez mais ativo na vida institucional brasileira. A judicialização de questões com grande impacto social e a exploração midiática desses julgamentos aproximam os Tribunais, especialmente o Supremo Tribunal Federal (STF), da sociedade.
Ocorre que a percepção da sociedade diante de decisões com grande repercussão nem sempre se dá de maneira positiva. Nesse sentido, foi desenvolvida uma teoria que tenta explicar a reação social perante importantes julgamentos nos tribunais constitucionais, gerando polêmicas e controvérsias em torno do objeto processual.
Trata-se do efeito backlash da jurisdição constitucional, que pode ser conceituado como reação política contra a linha ideológica do ativismo judicial (Marmelstein, 2016, p. 7), podendo ocasionar a ascensão de grupos contrários à atuação jurisdicional e a aprovação de medidas políticas que gerariam retrocesso em termos de direitos fundamentais.
Nesse contexto, pretende-se analisar a presença do efeito backlash na edição da Medida Provisória (MP) 870/2019, que estabeleceu a competência do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) para a identificação, a delimitação, a demarcação e os registros das terras tradicionalmente ocupadas por indígenas.
Utilizou-se a metodologia teórico-jurídica associada com a técnica de pesquisa de fontes bibliográficas do direito em geral. Como objeto da pesquisa estudou-se a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, o texto constitucional, atos legislativos e executórios e a doutrina jurídica, especialmente no que tange ao direito indígena e constitucional.
O propósito do presente artigo é compreender a dinâmica desse fenômeno e perceber os seus riscos de retrocesso para os direitos fundamentais indígenas, especialmente quanto ao direito relacionado aos direitos originários às terras que tradicionalmente habitam diante da edição da referida Medida Provisória e da regulamentação por meio de Decreto Executivo.
2. A Medida Provisória 870/2019 e a competência para demarcação de terras indígenas
A Medida Provisória 870/2019 foi publicada em 1º de janeiro de 2019, primeiro dia de um novo governo, estabelecendo a organização básica dos órgãos da Presidência da República e dos Ministérios.
Dentre suas disposições, merece destaque a previsão de competência do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento para a identificação, a delimitação, a demarcação e os registros das terras tradicionalmente ocupadas por indígenas, nos termos do art. 21, XVII e § 2º, I, in verbis:
Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento
Art. 21.Constitui área de competência do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento:
[...]
XIV - reforma agrária, regularização fundiária de áreas rurais, Amazônia Legal, terras indígenas e quilombolas;
[...]
§ 2º A competência de que trata o inciso XIV do caput, compreende:
I - a identificação, a delimitação, a demarcação e os registros das terras tradicionalmente ocupadas por indígenas; e
A fim de regulamentar a estrutura do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, o governo federal editou Decreto nº 9.667 em de 2 de janeiro de 2019, estabelecendo a sua área de competência nos seguintes termos:
Art. 1º O Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, órgão da administração federal direta, tem como área de competência os seguintes assuntos:
[...]
XIV - reforma agrária, regularização fundiária de áreas rurais, Amazônia Legal, terras indígenas e quilombolas;
[...]
§ 2º A competência de que trata o inciso XIV do caput, compreende:
I - a identificação, a delimitação, a demarcação e os registros das terras tradicionalmente ocupadas por indígenas;
[...]
Art. 11. À Secretaria Especial de Assuntos Fundiários compete:
I - formular, coordenar e supervisionar as ações e diretrizes sobre:
[...]
f) identificação, delimitação, demarcação e registro das terras tradicionalmente ocupadas por indígenas; e
g) licenciamento ambiental nas terras quilombolas e indígenas, em conjunto com os órgãos competentes; e
[...]
Art. 14. Ao Departamento de Identificação, Demarcação e Licenciamento compete:
I - coordenar, implementar, normatizar e traçar diretrizes acerca da identificação e demarcação de terras tradicionalmente ocupadas por indígenas e de terras remanescentes de quilombos;
II - coordenar a formação de Grupos Técnicos Especializados para realizar o estudo de identificação e demarcação de terras tradicionalmente ocupadas por indígenas;
III - manifestar-se em todo e qualquer licenciamento que afete direta ou indiretamente as terras indígenas e quilombolas; e
A fixação da referida competência gerou grande repercussão na mídia, sendo alvo de duras críticas, mas também de relevante apoio social. Isto se deve porque a competência para a identificação, a delimitação, a demarcação e os registros de terras indígenas era da FUNAI – Fundação Nacional do Índio, fundação federal criada pela Lei Lei nº 5.371/1967 e do Ministério da Justiça, ao qual àquela é vinculada.
A FUNAI é a coordenadora e principal executora da política indigenista do Governo Federal. Nesse sentido, cabia à FUNAI promover estudos de identificação e delimitação, demarcação, regularização fundiária e registro das terras tradicionalmente ocupadas pelos povos indígenas, além de monitorar e fiscalizar as terras indígenas.
Assim, a governo federal transferiu a atribuição de uma fundação que tem como função essencial a execução da política públicas voltadas às populações indígenas para o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, o qual possui como alçada principal a execução da política agrícola e o fomento da produção agropecuária.
A medida foi criticada por órgãos e autoridades especializadas na temática, como, por exemplo, a edição da Nota Técnica nº 1/2019-6ªCCR pela 6ª Câmara de Coordenação e Revisão - Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais do Ministério Público Federal (MPF), defendendo a inconstitucionalidade da Medida Provisória 870/2019 e dos Decretos 9.673/2019 e 9.667/2019.
No documento, o MPF afirma que a política indigenista instituída pela MP e pelos decretos afronta o estatuto constitucional indígena e viola o direito dos povos originários à consulta prévia, previsto na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
Além disso, a MP nº 870/2019, ao retirar da Funai a competência para realizar os estudos para demarcação de terras indígenas, transferindo a matéria para o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, inviabilizou a promoção de uma política ambiental que respeite a convergência entre o usufruto exclusivo das terras indígenas e a preservação do meio ambiente nesses territórios, o que implica retrocesso repudiado pelo sistema da Constituição, como já afirmou o STF na ADI nº. 4717.
Na nota, o MPF defende que a demarcação de terras indígenas volte ao Ministério da Justiça, que seria um mediador isento no caso de conflitos de interesses.
Outrossim, o Partido Socialista Brasileiro (PSB), em 31 de janeiro de 2019, ajuizou no Supremo Tribunal Federal Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6062 contra dispositivos da referida Medida Provisória na parte em que incluiu entre as atribuições do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento as competências relacionadas às terras indígenas.
A ação também busca a declaração de inconstitucionalidade de regras do Decreto 9.667/2019 que detalham o exercício das competências relacionadas às terras indígenas, retiradas da FUNAI e concentradas na Secretaria de Assuntos Fundiários do Mapa.
Por outro lado, a mudança foi defendida por apoiadores do atual governo no âmbito do Poder Executivo e Legislativo.
Ressalta-se que, nos termos do art. 64, § 3º da Constituição Federal, as Medidas Provisórias têm validade de 60 (sessenta) dias, prorrogáveis por mais 60 (sessenta) dias, perdendo sua eficácia se não for convertida em lei até o final desse prazo.
Já os Decretos editados na forma do art. 84, inciso VI, alínea “a” da Constituição de 1988, ou seja, que dispõem sobre organização e funcionamento da administração federal sem implicar em aumento de despesa nem criação ou extinção de órgãos públicos não têm prazo de validade, vigorando enquanto outro decreto regulamentar não dispor sobre os mesmos termos.
Ocorre que no caso em comento, tratando-se de transferência de competência da Administração Indireta (FUNAI) para Administração Direta do Poder Executivo (Ministério), fez-se necessário a edição de medida legislativa.
Assim, a ausência de conversão da Medida Provisória 870/2019 em lei não retira a relevância do assunto, em especial à possibilidade de regressão em direitos já consagrados.
Portanto, nota-se uma polêmica acerca da transferência da competência da FUNAI para o MAPA. Com base nisso, pretende-se estudar se o conteúdo das medidas legislativas promoveu um efeito backlash com fundamento, principalmente, nos direitos indígenas fundamentais consagrados na Constituição Federal de 1988.
3.O princípio da vedação ao retrocesso social e o efeito backlash da jurisdição constitucional
A teoria do efeito backlash da jurisdição constitucional nasceu nos Estados Unidos da América, tendo como grandes expoentes o professor Michael Klarman (1994) e Felice A. Stern (1965). Klarman (2007) relacionou diversos julgamentos da suprema corte americana com questões de ordem social e institucional, em que, diante de decisões com caráter mais liberal, houve uma expressiva rejeição política e social, gerando um retrocesso nos direitos debatidos na decisão.
O caso Furman v. Georgia é um dos mais emblemáticos para ilustrar o efeito backlash. Em 1972, a Suprema Corte dos Estados Unidos decidiu pela inconstitucionalidade da pena de morte, com fundamento na oitava emenda da constituição norte-americana, que proíbe a adoção de penas cruéis e incomuns.
Ocorre que, postura liberal da Suprema Corte gerou críticas da sociedade e fortaleceu o grupo conservador, que conquistou, nas eleições seguintes, diversos cargos no parlamento e no executivo, tendo como bandeira política o endurecimento da legislação penal.
Diante do apoio popular, os grupos conservadores conseguiram aprovar diversas leis aumentando o rigor da legislação penal, inclusive ampliando as possibilidades de aplicação da pena de morte. Conforme leciona Katya Kozicki (2015, p. 194)
“O termo backlash pode ser traduzido como reação, resposta contrária, repercussão. Dentro da teoria constitucional, vem sendo concebido como a reação contrária e contundente a decisões judiciais que buscam outorgar sentido às normas constitucionais. Seriam, então, reações que acontecem desde a sociedade e questionam a interpretação da Constituição realizada no âmbito do Poder Judiciário. No Brasil, penso ser o caso, especialmente, das reações populares às decisões do Supremo Tribunal Federal proferidas em sede de controle concentrado/abstrato de constitucionalidade. O engajamento popular na discussão de questões constitucionais não apenas é legítimo dentro dessa perspectiva, mas pode contribuir, também, para o próprio fortalecimento do princípio democrático”.
De acordo com George Marmelstein (2016, p. 6), o processo segue uma lógica que pode assim ser resumida:
“(1) Em uma matéria que divide a opinião pública, o Judiciário profere uma decisão liberal, assumindo uma posição de vanguarda na defesa dos direitos fundamentais. (2) Como a consciência social ainda não está bem consolidada, a decisão judicial é bombardeada com discursos conservadores inflamados, recheados de falácias com forte apelo emocional. (3) A crítica massiva e politicamente orquestrada à decisão judicial acarreta uma mudança na opinião pública, capaz de influenciar as escolhas eleitorais de grande parcela da população. (4) Com isso, os candidatos que aderem ao discurso conservador costumam conquistar maior espaço político, sendo, muitas vezes, campeões de votos. (5) Ao vencer as eleições e assumir o controle do poder político, o grupo conservador consegue aprovar leis e outras medidas que correspondam à sua visão de mundo. (6) Como o poder político também influencia a composição do Judiciário, já que os membros dos órgãos de cúpula são indicados politicamente, abre-se um espaço para mudança de entendimento dentro do próprio poder judicial. (7) Ao fim e ao cabo, pode haver um retrocesso jurídico capaz de criar uma situação normativa ainda pior do que a que havia antes da decisão judicial, prejudicando os grupos que, supostamente, seriam beneficiados com aquela decisão. ”
Assim, o efeito backlash consiste na mobilização das forças políticas e sociais em reação a uma decisão do Judiciário; a oposição ferrenha dessas forças pode produzir um acirramento de tensões preexistentes na ordem social que, na prática, pode levar à reversão da decisão judicial. É a indignação em massa das forças políticas e sociais contra determinado posicionamento do Judiciário (na maioria dos casos, da jurisdição constitucional, já que os posicionamentos adotados no controle concentrado de constitucionalidade atingem um número indeterminado de pessoas, graças à ampla incidência dos efeitos da decisão). Nesse sentido, é a lição de Daniel Sarmento e Cláudio Pereira de Souza Neto (2013, p. 346):
“Decisões em descompasso com estes valores podem gerar um efeito conhecido como backlash, que consiste em ampla mobilização das forças políticas e sociais que se opõem à mudança, o que, além do aumento da polarização da sociedade, pode acarretar, como resultado prático, a reversão da alteração”.
No Brasil é notória a presença do efeito backlash, fruto da reação política ao aumento do protagonismo judicial nas últimas décadas. É perceptível a ascensão política de grupos conservadores, havendo, de fato, um risco de retrocesso no que tange a direitos fundamentais de minorias.
A cada caso polêmico enfrentado pelo Supremo Tribunal Federal, tenta-se, na via política, aprovar medidas legislativas contrárias ao posicionamento judicial. Assim, por exemplo, o reconhecimento da validade jurídica das uniões homoafetivas pelo Supremo Tribunal Federal (ADI 4277) tem gerado, na via política, o crescimento de vozes favorável ao chamado Estatuto da Família, que pretende excluir as relações homoafetivas da proteção estatal.
Do mesmo modo, a decisão do Supremo Tribunal Federal de não-criminalizar a antecipação terapêutica do parto, em caso de anencefalia do feto, bem como a decisão favorável à realização de pesquisas científicas com células-tronco embrionárias (ADPF 54), provocou o fortalecimento político de grupos mais conservadores, favoráveis ao chamado Estatuto do Nascituro, cujo objetivo principal é proibir absolutamente o aborto e as pesquisas com células-tronco.
O que se nota, nesses casos, é que a postura liberal do STF tem contribuído, curiosamente, para a ascensão do conservadorismo. Mas isso não é necessariamente paradoxal. Em verdade, a mudança jurídica decorrente da decisão judicial obriga que os conservadores explicitem seus pontos de vista claramente e, nesse processo, um sentimento de intolerância que até então era encoberto pela conveniência do status quo. (Marmelstein, 2016, p.12).
Nesse sentido, a teoria denominada “Constitucionalismo democrático”, desenvolvida por Reva Siegal e Robert Post (2007), afirma que o Judiciário deve se manifestar sobre tais casos, mesmo que haja uma rejeição da decisão pela sociedade. Assim, o backlash não seria negativo e a discordância interpretativa, uma condição normal para o desenvolvimento do direito constitucional.
Há uma corrente que entende o fenômeno backlash não necessariamente com conteúdo negativo, mas tão somente uma divergência da sociedade, que não representaria uma ameaça ao funcionamento ordinário do jogo democrático. Da mesma forma, a decisão com viés mais liberal ou progressista dos Tribunais não poderia ser encarada sempre como o melhor entendimento a ser seguido. Nesse sentido, conclui Vanice Regina Lírio do Valle (2013, p. 21):
“Oposição a uma deliberação do poder – e o Judiciário certamente o é – a nada mais expressa do que uma fase de um diálogo permanente na busca da atualização de sentido do texto constitucional. Retomando as leis de Newton - terceira lei de Newton – a toda ação corresponderá uma reação;, aquilo de que se cuida é da relação de forças agindo sobre um corpo, e o movimento que elas causam. Desconhecer um dos vetores de força (backlash) é entender mal o movimento. Se a decisão judicial em controle de constitucionalidade tem a virtude de retirar o corpo (social) da inércia; nem por isso se deve entender que essa mudança de movimento conduza direta e inexoravelmente à melhor trajetória. Corpos em movimento sujeitam-se a complexas relações de forças – e o aprimoramento do seu curso do Estado Democrático de Direito rumo à concretização dos valores constitucionais depende justamente de (re)conhecer-se todos esses vetores.”
Ocorre que a manifestação do fenômeno no Brasil tem demonstrado uma tendência ao retrocesso em relação aos direitos fundamentais, como nos casos do Supremo Tribunal Federal supracitados. Assim, este artigo pretende relacionar o efeito backlash com uma possível regressão dos direitos garantidos nas decisões judiciais.
Partindo-se da premissa que o efeito backlash é uma reação política e social contra a linha ideológica do ativismo judicial, será utilizado como decisão paradigma o acórdão da PET 3388, também conhecida como caso Raposa Serra do Sol, julgamento pelo Supremo Tribunal Federal em 2009.
Na decisão, a Corte decidiu pela manutenção da demarcação da reserva indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, e a retirada dos produtores rurais que à época a ocupavam, porém, listou uma série de condições para a execução da decisão, nomeadas de salvaguardas, em razão da alta complexidade das questões sociais, culturais, antropológicas e federativas envolvidas nesse caso. Dentre as premissas estabelecidas no acórdão, merecem destaque para fins deste estudo as seguintes:
“AÇÃO POPULAR. DEMARCAÇÃO DA TERRA INDÍGENA RAPOSA SERRA DO SOL. INEXISTÊNCIA DE VÍCIOS NO PROCESSO ADMINISTRATIVODEMARCATÓRIO. OBSERVÂNCIA DOS ARTS. 231 E 232 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL, BEM COMO DA LEI Nº 6.001/73 E SEUS DECRETOS REGULAMENTARES. CONSTITUCIONALIDADE E LEGALIDADE DA PORTARIA Nº 534/2005, DO MINISTRO DA JUSTIÇA, ASSIM COMO DO DECRETO PRESIDENCIAL HOMOLOGATÓRIO. RECONHECIMENTO DA CONDIÇÃO INDÍGENA DA ÁREA DEMARCADA, EM SUA TOTALIDADE. MODELO CONTÍNUO DE DEMARCAÇÃO. CONSTITUCIONALIDADE. REVELAÇÃO DO REGIME CONSTITUCIONAL DE DEMARCAÇÃO DAS TERRAS. INDÍGENAS. A CONSTITUIÇÃO FEDERAL COMO ESTATUTO JURÍDICO DA CAUSA INDÍGENA. A DEMARCAÇÃO DAS TERRAS INDÍGENAS COMO CAPÍTULO AVANÇADO DO CONSTITUCIONALISMO FRATERNAL. INCLUSÃO COMUNITÁRIA PELA VIA DA IDENTIDADE ÉTNICA. VOTO DO RELATOR QUE FAZ AGREGAR AOS RESPECTIVOS FUNDAMENTOS SALVAGUARDAS INSTITUCIONAIS DITADAS PELA SUPERLATIVA IMPORTÂNCIA HISTÓRICO-CULTURAL DA CAUSA. SALVAGUARDAS AMPLIADAS A PARTIR DE VOTO-VISTA DO MINISTRO MENEZES DIREITO E DESLOCADAS PARA A PARTE DISPOSITIVA DA DECISÃO.
8. A DEMARCAÇÃO COMO COMPETÊNCIA DO PODER EXECUTIVO DA UNIÃO. Somente à União, por atos situados na esfera de atuação do Poder Executivo, compete instaurar, sequenciar e concluir formalmente o processo demarcatório das terras indígenas, tanto quanto efetivá-lo materialmente, nada impedindo que o Presidente da República venha a consultar o Conselho de Defesa Nacional (inciso III do § 1º do art. 91 da CF), especialmente se as terras indígenas a demarcar coincidirem com faixa de fronteira. As competências deferidas ao Congresso Nacional, com efeito concreto ou sem densidade normativa, exaurem-se nos fazeres a que se referem o inciso XVI do art. 49 e o § 5º do art. 231, ambos da Constituição Federal.
9. A DEMARCAÇÃO DE TERRAS INDÍGENAS COMO CAPÍTULO AVANÇADO DO CONSTITUCIONALISMO FRATERNAL. Os arts. 231 e 232 da Constituição Federal são de finalidade nitidamente fraternal ou solidária, própria de uma quadra constitucional que se volta para a efetivação de um novo tipo de igualdade: a igualdade civil-moral de minorias, tendo em vista o proto-valor da integração comunitária. Era constitucional compensatória de desvantagens historicamente acumuladas, a se viabilizar por mecanismos oficiais de ações afirmativas. No caso, os índios a desfrutar de um espaço fundiário que lhes assegure meios dignos de subsistência econômica para mais eficazmente poderem preservar sua identidade somática, linguística e cultural. Processo de uma aculturação que não se dilui no convívio com os não-índios, pois a aculturação de que trata a Constituição não é perda de identidade étnica, mas somatório de mundividências. Uma soma, e não uma subtração. Ganho, e não perda. Relações interétnicas de mútuo proveito, a caracterizar ganhos culturais incessantemente cumulativos. Concretização constitucional do valor da inclusão comunitária pela via da identidade étnica.
10. O FALSO ANTAGONISMO ENTRE A QUESTÃO INDÍGENA E O DESENVOLVIMENTO. Ao Poder Público de todas as dimensões federativas o que incumbe não é subestimar, e muito menos hostilizar comunidades indígenas brasileiras, mas tirar proveito delas para diversificar o potencial econômico-cultural dos seus territórios (dos entes federativos). O desenvolvimento que se fizer sem ou contra os índios, ali onde eles se encontrarem instalados por modo tradicional, à data da Constituição de 1988, desrespeita o objetivo fundamental do inciso II do art. 3º da Constituição Federal, assecuratório de um tipo de desenvolvimento nacional tão ecologicamente equilibrado quanto humanizado e culturalmente diversificado, de modo a incorporar a realidade indígena.
11. O CONTEÚDO POSITIVO DO ATO DE DEMARCAÇÃO DAS TERRAS INDÍGENAS. 11.1. O marco temporal de ocupação. A Constituição Federal trabalhou com data certa —— a data da promulgação dela própria (5 de outubro de 1988) —— como insubstituível referencial para o dado da ocupação de um determinado espaço geográfico por essa ou aquela etnia aborígene; ou seja, para o reconhecimento, aos índios, dos direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam. 11.2. O marco da tradicionalidade da ocupação. É preciso que esse estar coletivamente situado em certo espaço fundiário também ostente o caráter da perdurabilidade, no sentido anímico e psíquico de continuidade etnográfica. A tradicionalidade da posse nativa, no entanto, não se perde onde, ao tempo da promulgação da Lei Maior de 1988, a reocupação apenas não ocorreu por efeito de renitente esbulho por parte de não-índios. Caso das fazendas situadas na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, cuja ocupação não arrefeceu nos índios sua capacidade de resistência e de afirmação da sua peculiar presença em todo o complexo geográfico da Raposa Serra do Sol. 11.3. O marco da concreta abrangência fundiária e da finalidade prática da ocupação tradicional. Áreas indígenas são demarcadas para servir concretamente de habitação permanente dos índios de uma determinada etnia, de par com as terras utilizadas para suas atividades produtivas, mais as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e ainda aquelas que se revelarem necessárias à reprodução física e cultural de cada qual das comunidades étnico-indígenas, segundo seus usos, costumes e tradições (usos, costumes e tradições deles, indígenas, e não usos, costumes e tradições dos não-índios). Terra indígena, no imaginário coletivo aborígine, não é um simples objeto de direito, mas ganha a dimensão de verdadeiro ente ou ser que resume em si toda ancestralidade, toda coetaneidade e toda posteridade de uma etnia. Donde a proibição constitucional de se remover os índios das terras por eles tradicionalmente ocupadas, assim como o reconhecimento do direito a uma posse permanente e usufruto exclusivo, de parelha com a regra de que todas essas terras são inalienáveis indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis (§ 4º do art. 231 da Constituição Federal). O que termina por fazer desse tipo tradicional de posse um heterodoxo instituto de Direito Constitucional, e não uma ortodoxa figura de Direito Civil. Donde a clara intelecção de que os artigos 231 e 232 da Constituição Federal constituem um completo estatuto jurídico da causa indígena. 11.4. O marco do conceito fundiariamente extensivo do chamado princípio da proporcionalidade. A Constituição de 1988 faz dos usos, costumes e tradições indígenas o engate lógico para a compreensão, entre outras, das semânticas da posse, da permanência, da habitação, da produção econômica e da reprodução física e cultural das etnias nativas. O próprio conceito do chamado princípio da proporcionalidade, quando aplicado ao tema da demarcação das terras indígenas, ganha um conteúdo peculiarmente extensivo.
12. DIREITOS ORIGINÁRIOS. Os direitos dos índios sobre as terras que tradicionalmente ocupam foram constitucionalmente reconhecidos, e não simplesmente outorgados, com o que o ato de demarcação se orna de natureza declaratória, e não propriamente constitutiva. Ato declaratório de uma situação jurídica ativa preexistente. Essa a razão de a Carta Magna havê-los chamado de originários, a traduzir um direito mais antigo do que qualquer outro, de maneira a preponderar sobre pretensos direitos adquiridos, mesmo os materializados em escrituras públicas ou títulos de legitimação de posse em favor de não-índios. Atos, estes, que a própria Constituição declarou como nulos e extintos (§ 6º do art. 231 da CF).
13. O MODELO PECULIARMENTE CONTÍNUO DE DEMARCAÇÃO DAS TERRAS INDÍGENAS. O modelo de demarcação das terras indígenas é orientado pela ideia de continuidade. Demarcação por fronteiras vivas ou abertas em seu interior, para que se forme um perfil coletivo e se afirme a auto-suficiência econômica de toda uma comunidade usufrutuária. Modelo bem mais serviente da ideia cultural e econômica de abertura de horizontes do que de fechamento em bolsões, ilhas, blocos ou clusters, a evitar que se dizime o espírito pela eliminação progressiva dos elementos de uma dada cultura (etnocídio). (Pet 3388 / RR – RORAIMA, Relator Min. CARLOS BRITTO, Tribunal Pleno, DJe 24/09/2009, Publicação em 25/09/2009). (Grifos não originais).
Como se vê, a Corte Suprema tem entendimento muito consolidado a respeito de dois tópicos fundamentais para a demarcação das terras indígenas: 1) a data da promulgação da Constituição, em 5 de outubro de 1988, como marco temporal de ocupação da terra pelos índios, para efeito de reconhecimento como terra indígena; 2) a vedação à ampliação de terras indígenas já demarcadas.
Para os indígenas daquela região, a decisão do nosso Tribunal Maior atendeu plenamente os interesses das etnias residentes, porquanto entendeu como válido e regular todo o processo demarcatório, corroborando a sua forma contínua e mandando retirar todos os não índios que lá promoveram reconhecido esbulho.
Entretanto, para o futuro da política indigenista no brasil alguns retrocessos se verificaram e muitas dúvidas se levantaram, primeiramente com o estabelecimento das 19 (dezenove) diretrizes trazidas pelo Ministro Menezes Direito, discussão inclusive que se alastrou entre os próprios julgados daquela Suprema Corte.
Assim, o caso Raposa Serra do Sol constitui um dos julgamentos mais importantes da história recente da Suprema Corte brasileira, visto que as difíceis e complexas questões jurídicas e sociais envolvidas no caso Raposa Serra do Sol exigiram do STF o desenvolvimento de processos de interpretação criativa da Constituição, especialmente de seus artigos 231 e 232, que perfazem o sistema de direitos e garantias fundamentais dos índios.
Percebe-se, portanto, uma atuação predominantemente protetiva em relação ao direito à demarcação das terras indígenas, evidenciado a função contramajoritária do Supremo, é dizer, de protetor das minorias analisada na perspectiva de uma concepção material de democracia constitucional (Celso de Mello, ADPF 187, 2011). Nas palavras do Ministro Luis Roberto Barroso (2012, p. 19):
“Em suma: o Judiciário é o guardião da Constituição e deve fazê-la valer, em nome dos direitos fundamentais e dos valores e procedimentos democráticos, inclusive em face dos outros Poderes. Eventual atuação contramajoritária, nessas hipóteses, se dará a favor, e não contra a democracia. ”
Sucede-se que a posição do Supremo foi intensamente criticada por membros do Poder Legislativo que defendem os interesses do agronegócio, bem como de parcela da sociedade. Nesse ínterim, surgiram propostas legislativas tendentes a modificar o procedimento de demarcação de terras indiretas e alterar a execução de políticas indigenistas.
Isto posto, pretende-se inferir que houve uma reação política contra a linha ideológica adotada na decisão do Supremo Tribunal Federal, ocasionando, consequentemente, a ascensão política de grupos contrários à atuação jurisdicional e a aprovação de medidas políticas que geram retrocesso aos direitos fundamentais.
A Medida Provisória e o Decreto concretizam uma das bandeiras defendidas pelo atual presente durante a companha presidencial quanto à oposição da demarcação e reconhecimento de terras indígenas. (Folha de São Paulo, 2019).
Assim, caracteriza-se efeito backlash, no caso em análise, no momento em que a maioria do eleitorado brasileiro elegeu um grupo político que defendia restrições às garantias relacionadas às terras indígenas, dentre elas as premissas estabelecidas na decisão judicial, e, no primeiro dia de governo, edita medida política a fim de alterar o regime jurídico anterior.
4.Retrocesso aos direitos fundamentais indígenas
Direitos fundamentais podem ser conceituados como bens ou valores que objetivam concretizar a dignidade da pessoa humana ou limitar o poder estatal, previstos em uma Constituição ou norma equivalente.
Nesse sentido, rompendo com os ordenamentos jurídicos anteriormente instaurados, a Constituição Federal de 1988 reconheceu direitos originários aos povos indígenas e ampliou suas garantias.
Imperioso fazer um parêntese quanto à diferença entre as expressões “direitos fundamentais” e “direitos humanos”. Parte majoritária da doutrina entende não serem expressões sinônimas, no entanto, os termos se separariam apenas pelo plano se sua positivação, sendo, portanto, normas jurídicas exigíveis no plano interno do Estado (direitos fundamentais) e no plano do Direito Internacional (direitos humanos), e, por isso, positivados nos instrumentos de normatividade internacionais como Tratados e Convenções Internacionais (Fernandes, 2017, p. 321).
Muito embora exista tal distinção para fins didáticos, os direitos humanos e fundamentais não se repelem, mas se complementam, como afirma o Ministro Gilmar Mendes (2008, p. 234):
“Essa distinção conceitual não significa que os direitos humanos e os direitos fundamentais estejam em esferas estanques, incomunicáveis entre si. Há uma interação recíproca entre eles. Os direitos internacionais encontram, muitas vezes, matriz nos direitos fundamentais consagrados pelos Estados e estes, de seu turno, não raro acolhem no seu catálogo de direitos fundamentais os direitos humanos proclamados em diplomas e em declarações internacionais”.
Quanto à consagração dos direitos humanos aos povos indígenas merecem destaque a Convenção no 169 da Organização Internacional do Trabalho - OIT sobre Povos Indígenas e Tribais, a Convenção Americana de Direitos Humanos e a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos.
O Constituinte brasileiro achou por bem organizar os direitos e garantias fundamentais aos indígenas em capítulo próprio, no entanto, importante relembrar que os direitos individuais e coletivos previstos no art. 5º aplicam-se da mesma forma aos povos indígenas.
O Supremo Tribunal Federal considerou, inclusive, os direitos fundamentais indígenas, especificamente os relacionados à demarcação de terras indígenas, como um “capítulo avançado do constitucionalismo fraternal”. Relevante a transcrição de parte da ementa do julgado do caso Raposa Serra do Sol:
9. A DEMARCAÇÃO DE TERRAS INDÍGENAS COMO CAPÍTULO AVANÇADO DO CONSTITUCIONALISMO FRATERNAL. Os arts. 231 e 232 da Constituição Federal são de finalidade nitidamente fraternal ou solidária, própria de uma quadra constitucional que se volta para a efetivação de um novo tipo de igualdade: a igualdade civil-moral de minorias, tendo em vista o proto-valor da integração comunitária. Era constitucional compensatória de desvantagens historicamente acumuladas, a se viabilizar por mecanismos oficiais de ações afirmativas. No caso, os índios a desfrutar de um espaço fundiário que lhes assegure meios dignos de subsistência econômica para mais eficazmente poderem preservar sua identidade somática, linguística e cultural. Processo de uma aculturação que não se dilui no convívio com os não-índios, pois a aculturação de que trata a Constituição não é perda de identidade étnica, mas somatório de mundividências. Uma soma, e não uma subtração. Ganho, e não perda. Relações interétnicas de mútuo proveito, a caracterizar ganhos culturais incessantemente cumulativos. Concretização constitucional do valor da inclusão comunitária pela via da identidade étnica.
Em seu voto, o Ministro Relator Carlos Ayres Brito defendeu que a demarcação de terras indígenas representa um capítulo avançado do nosso constitucionalismo fraternal, típicos de uma era compensatória das desvantagens historicamente acumuladas, a se viabilizar por mecanismos oficiais de ações afirmativas e procurando alcançar o superior estágio da integração comunitária de todo o povo brasileiro. Dentre os direitos positivados no texto constitucional, destaca-se os direitos relacionados à terra dispostos no art. 231, in verbis:
Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.
§ 1º São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.
§ 2º As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes.
§ 3º O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei.
§ 4º As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis.
§ 5º É vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo, "ad referendum" do Congresso Nacional, em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população, ou no interesse da soberania do País, após deliberação do Congresso Nacional, garantido, em qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse o risco.
§ 6º São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa fé.
§ 7º Não se aplica às terras indígenas o disposto no art. 174, § 3º e § 4º. (Grifos não originais).
No que tange ao regime jurídico das terras tradicionalmente ocupadas pelos povos indígenas o artigo 20, inciso X as reservou como de domínio da União, sendo a posse permanente e o usufruto exclusivo aos índios.
O reconhecimento da posse à terra é fator preponderante para a preservação da cultura indígena. Nesse sentido, afirma José Afonso da Silva (2014, p. 866) que não foi à toa que a questão da terra se transformou no ponto central dos direitos constitucionais indígenas, pois para eles ela tem um valor de sobrevivência física e cultural, intimamente ligada aos sentimentos de identidade e de existência.
A jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) resguarda o direito de propriedade aos povos indígenas com base no art. 21 da Convenção Americana de Direitos Humanos (Caso Comunidade Moiwana vs. Suriname).
A Corte IDH revisita o direito de propriedade privada para assegurar o direito de propriedade coletiva e comunal da terra, como base da vida espiritual e cultural dos povos indígenas, bem como de sua própria integridade e sobrevivência econômica (Piovesan, 2014, p. 184).
A Convenção 169 da OIT, incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro por meio do Decreto no 5.051 de 2004, prevê no artigo 13, parte 1, posteriormente alterado pelo Decreto no 10.088, de 5 de novembro de 2019, a importância da terra para a cultura e valores dos povos indígenas:
“Artigo 13
1. Ao aplicarem as disposições desta parte da Convenção, os governos deverão respeitar a importância especial que para as culturas e valores espirituais dos povos interessados possui a sua relação com as terras ou territórios, ou com ambos, segundo os casos, que eles ocupam ou utilizam de alguma maneira e, particularmente, os aspectos coletivos dessa relação. ”
A terra, pois, no que diz respeito aos índios, transcende ao aspecto meramente patrimonial. Ela se apresenta como condição de existência, de vida desses povos. E é a vida não apenas física, biológica, mas em suas múltiplas referências. Além da sobrevivência física de cada um dos membros da comunidade, busca-se garantir a sobrevivência de indivíduos numa intersubjetividade de compreensão.
Relembrando o julgamento da PET 3388, a Suprema Corte teceu importantes premissas quanto ao falso antagonismo entre a questão indígena e o desenvolvimento:
“Ao Poder Público de todas as dimensões federativas o que incumbe não é subestimar, e muito menos hostilizar comunidades indígenas brasileiras, mas tirar proveito delas para diversificar o potencial econômico-cultural dos seus territórios (dos entes federativos). O desenvolvimento que se fizer sem ou contra os índios, ali onde eles se encontrarem instalados por modo tradicional, à data da Constituição de 1988, desrespeita o objetivo fundamental do inciso II do art. 3º da Constituição Federal, assecuratório de um tipo de "desenvolvimento nacional" tão ecologicamente equilibrado quanto humanizado e culturalmente diversificado, de modo a incorporar a realidade indígena. ”
Levando em consideração a relevância do território às comunidades e, consequentemente da demarcação das terras indígenas, questiona-se quanto ao retrocesso aos direitos fundamentais e direitos humanos relacionados às terras indígenas.
Vige em nosso ordenamento jurídico o princípio da vedação ao retrocesso, também denominado de princípio da proibição da evolução reacionária que expressa a impossibilidade de retroceder, suprimir ou reprimir direitos fundamentais fixados na Constituição Federal. Na linha de explicação de Ingo W. Sarlet (2009, p. 6), o princípio da proibição de retrocesso social significaria
“toda e qualquer forma de proteção de direitos fundamentais em face de medidas do poder público, com destaque para o legislador e o administrador, que tenham por escopo a supressão ou mesmo restrição de direitos fundamentais (sejam eles sociais, ou não)”.
Podemos considerar, portanto, que os direitos fundamentais devem ser dotados de garantia e estabilidade em relação as conquistas alcançadas pela sociedade em relação ao legislador (Canotilho, 2004, p. 111).
Sucede-se que as alterações promovidas pela Medida Provisória 870/2019 colide com os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente previstos no art. 231 da Constituição Federal, bem como dispositivos na Convenção 169 da OIT – artigos 13 a 19 - que consagram os direitos de propriedade e de posse às comunidades indígenas sobre as terras que ocupam.
Conforme já explanado, as medidas esvaziaram a atribuição mais significante da FUNAI, qual seja, de promover estudos de identificação e delimitação, demarcação, regularização fundiária e registro das terras tradicionalmente ocupadas pelos povos indígena.
Importante ressaltar que a FUNAI foi criada com a finalidade de executar a política indigenista, tendo como missão a promoção e defesa dos direitos dos povos indígenas.
Em contrapartida, o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento é responsável pela gestão das políticas públicas de estímulo à agropecuária, pelo fomento do agronegócio e pela regulação e normatização de serviços vinculados ao setor.
Nota-se que foge completamente da finalidade do Ministério, tanto em seu aspecto técnico como histórico, a competência para regularização de terras indígenas.
É fato notório a disputa histórica entre as comunidades indígenas e ruralistas, avanço das grandes fazendas sobre as terras indígenas, bem como a exploração de madeira e garimpos de forma ilegal. O conflito agrário foi, inclusive, o fundamento para o ajuizamento da Ação Popular PET 3388 no STF, julgado explorado em tópico anterior.
Os conflitos no campo foram os responsáveis por ao menos 24 assassinatos ocorridos em 2018 – 5 delas de indígenas e quilombolas. O número total de casos é inferior aos computados em 2017, quando houve 71 mortes, mas não representa uma queda na violência, segundo a Comissão Pastoral da Terra (CPT), responsável pelo levantamento. (G1, 2019).
De acordo com o antropólogo Carlos Fausto, de 1988 a 2010 houve um processo contínuo de demarcação, sem grande interferência dos níveis mais altos da política, à exceção da demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Durante todos esses anos, houve conciliação do desenvolvimento agrícola com a criação de áreas de conservação e terras indígenas.
Segundo a FUNAI, atualmente existem 462 terras indígenas no Brasil - o que representa cerca de 12,2% do território nacional – mas apenas 8% estão regularizadas. A maior parte se concentra na Amazônia Legal.
Assim, a regularização de terras indígenas com processos pendentes sofre grande e iminente risco de ser interrompida.
Muito embora o direito ao reconhecimento da terra esteja regulamentado em nível constitucional e consagrado no âmbito internacional, percebe-se a sua fragilidade diante de interesses políticos e econômicos. Nesse sentido, defende o jurista Edson Damas da Silveira (2010, p. 32):
“Negando-se o direito de autodeterminação das “minorias invisíveis” que resistiram ao poderio opressor do estado-nação, se estaria por tabela deixando de reconhecer uma pluralidade de culturas que sempre existiu e que, com a supremacia dos interesses privados do mercado e a sua confusão com as políticas de estado, passou a incomodar quem de fato controla e dita os rumos da sociedade hegemônica”.
Portanto, o princípio da proibição da evolução reacionária deve ser um forte instrumento para evitar retrocessos e abusos nos futuros processos de reconhecimento e demarcação de terras indígenas.
5.A decisão do Supremo Tribunal Federal nas ADI’s 6062, 6172, 6173 E 6174 em relação à Medida Provisória 886/2019
O então Presidente da República Jair Bolsonaro editou a Medida Provisória 870, de 1º de janeiro de 2019. Essa MP tratou sobre a competência de diversos órgãos e entidades da administração pública federal.
Um dos temas disciplinados era a competência para demarcação das terras indígenas. O art. 21, § 2º da MP 870/2019 transferia da FUNAI para o Ministério da Agricultura a competência para demarcação das terras indígenas.
Essa MP foi parcialmente aprovada pelo Congresso Nacional e se tornou a Lei nº 13.844/2019, publicada no dia 18/06/2019.
Um dos pontos rejeitados pelo Parlamento foi a transferência da competência da demarcação das terras indígenas para o Ministério da Agricultura. O Congresso Nacional rejeitou esse dispositivo que, portanto, não virou lei.
Assim que a Lei nº 13.844/2019 foi publicada, o Presidente da República editou uma nova medida provisória, a MP 886/2019, que teve como objetivo alterar diversos dispositivos da recém-publicada Lei nº 13.844/2019.
Ocorre que essa MP 886/2019 trouxe novamente um dispositivo transferindo para o Ministério da Agricultura a competência para a demarcação das terras indígenas.
Diante disso, antes mesmo que a MP 886/2019 fosse analisada pelo Congresso Nacional, diversos partidos políticos ajuizaram ADI no STF afirmando que esse dispositivo da MP que transfere a competência é inconstitucional, por violar o art. 62, § 10, da CF/88.
A Constituição Federal prevê, expressamente, que é vedada a reedição, na mesma sessão legislativa, de medida provisória que tenha sido rejeitada, consoante dispositivo transcrito abaixo:
“Art. 62. Em caso de relevância e urgência, o Presidente da República poderá adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional
[...]
§ 10. É vedada a reedição, na mesma sessão legislativa, de medida provisória que tenha sido rejeitada ou que tenha perdido sua eficácia por decurso de prazo. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 32/2001)”.
Pela lógica da separação de Poderes, ao se admitir, diante da rejeição do Congresso, a possibilidade de edição de nova Medida Provisória com a mesma matéria anteriormente rejeitada, haveria uma sucessão infindável de atos normativos. Além disso, a última palavra, no momento de conversão de projeto de lei em lei, é do Congresso Nacional. O Presidente da República tem apenas o poder de veto.
Assim, o Supremo Tribunal Federal declarou inconstitucional dispositivo da MP 886/2019, que transferia para o Ministério da Agricultura a competência para realizar a demarcação de terras indígenas.
Essa disposição foi declarada inconstitucional porque o Congresso Nacional já havia rejeitado uma outra proposta, com esse mesmo teor, prevista em outra medida provisória (MP 870), editada no mesmo ano/sessão legislativa (2019).
Nesse sentido, o STF entendeu que houve a reedição, na mesma sessão legislativa, de proposta que já havia sido rejeitada pelo Congresso Nacional, o que violou o § 10 do art. 62 da Constituição Federal.
Nos termos expressos da Constituição Federal, é vedada a reedição, na mesma sessão legislativa, de medida provisória que tenha sido rejeitada.
Muito embora a referida Medida Provisória tenha sido extirpada do ordenamento jurídico e seus efeitos cessados, o ato normativo não foi declarado inconstitucional com fundamento na violação e retrocessos causados a direitos fundamentais, mas baseado em argumentos formais de desrespeito ao processo legislativo.
6.Conclusão
Não se pretende chegar a conclusões definitivas, visto que o efeito backlash não é um fenômeno estático, mas que se manifesta de forma dinâmica no decorrer de momentos históricos. Assim, o efeito backlash no que tange às comunidades indígenas continuará se manifestando enquanto as medidas políticas não forem revertidas.
Portanto, podemos constatar a presença do fenômeno com a reação política e social contra a linha ideológica adotada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do Caso Raposa Serra do Sol e a consequente ascensão política de grupos contrários à atuação jurisdicional que aprovou a MP e o Decreto, gerando retrocesso aos direitos fundamentais e humanos ligados à demarcação de terras indígenas.
No julgamento do Caso Raposa Serra do Sol, o Ministro relator Carlos Ayres Brito esclareceu que há precisas coordenadas constitucionais para a identificação das terras indígenas a demarcar, ficando a cargo do Poder Executivo tal tarefa, competindo ao Congresso Nacional algumas situações de excepcional e expressa intervenção.
Muito embora existam coordenadas constitucionais para a identificação das terras indígenas, percebe-se que as garantias relacionadas a esses direitos são extremamente vulneráveis. As instituições indigenistas e as próprias comunidades indígenas perderam dos poucos instrumentos de defesa que os governos anteriores ofereciam, qual seja, o essencial papel de mediador do Poder Executivo Federal nos históricos conflitos entre índios e ruralistas.
Tendo em vista a recente aprovação das medidas, não houve tempo para o governo executar a nova política relacionada ao reconhecimento e à demarcação de terras indígenas. Entretanto, não devemos aguardar o efetivo retrocesso para tomar medidas repressivas. Imperioso que o princípio da vedação ao retrocesso seja utilizado de forma a evitar medidas executivas que visem restringir, suprimir ou retroceder o processo de reconhecimento e demarcação de terras indígenas.
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Advogada. OAB/AM 12.658. Especialista em direito público pela Universidade Estadual do Amazonas. Graduada em Direito pela Universidade Federal do Amazonas.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FIGLIUOLO, Bárbara Cordeiro. O princípio da vedação ao retrocesso social e a edição da Lei nº 13.844/2019 e Medida Provisória 886 na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 11 nov 2022, 04:14. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos /59964/o-princpio-da-vedao-ao-retrocesso-social-e-a-edio-da-lei-n-13-844-2019-e-medida-provisria-886-na-jurisprudncia-do-supremo-tribunal-federal. Acesso em: 29 dez 2024.
Por: João Carlos Parcianello
Por: OTAVIO GOETTEN
Por: Anna elisa Alves Marques
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